Carlos Tavares está fora da Stellantis e explicamos o porquê

Carlos Tavares está fora da Stellantis ano e meio antes do fim do seu contrato após uma disputa de poder ganha por John Elkann.

Carlos Tavares é um dos mais importantes líderes da indústria automóvel europeia. Aos 66 anos, o português nascido em Lisboa, era visto como o CEO com “toque de Midas”. Em primeiro lugar pela revitalização do Grupo PSA. Em segundo lugar pelo resgate da Opel. Finalmente, porque deu muito dinheiro a ganhar às famílias Agnelli e Peugeot com a Stellantis. Ao que parece, o toque desapareceu e Carlos Tavares está fora da Stellantis ano e meio antes do fim do seu contrato. Os mercados não gostaram e o quarto grupo mundial desvalorizou nada menos que 2,4 mil milhões de euros.

Um comunicado seco e sem grandes justificações anunciou ao mundo que Carlos Tavares deixava de ser o CEO do grupo Stellantis com efeitos imediatos. Estávamos no domingo, dia 1 de dezembro. Ficou o mundo automóvel boquiaberto com esta decisão tão repentina, até porque já tinha sido anunciado que Carlos Tavares abandonaria o cargo no final do seu contrato em 2026. Com toda a certeza, algo aconteceu para esta situação. E nós contamos-lhe tudo aquilo que se sabe até agora sobre este inusitado despedimento.

Stellantis

O “Toque de Midas” de um português radicado em França

Diz-se que o poder corrói e a aura de Carlos Tavares desde que deixou o grupo Renault de candeias às avessas com Carlos Ghosn, revelou alguém ambicioso e que entendia ter capacidades para ser mais que um adjunto.

CARLOS TAVARES RENAULT CARLOS GHOSN
Carlos Ghosn e Carlos Tavares nos tempos da Aliança Renault Nissan

Saltou para o grupo PSA, em grandes dificuldades, tendo operado o “milagre” de fazer a empresa regressar aos lucros. Empurrado pelos excelentes resultados obtidos, Carlos Tavares avançou para a compra da Opel. Uma felicíssima Mary Barra, na época a CEO da General Motors, entregou as chaves da Opel e da Vauhxall a Tavares e apanhou o avião de volta aos Estados Unidos feliz por se livrar de um sorvedouro de dólares.

O português pegou na marca alemã e em menos tempo do que leva a dizer “a Opel estava em grandes dificuldades há demasiado tempo” devolveu a casa de Russelsheim aos lucros.

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Carlos Tavares (CEO PSA) e Mary Barra (CEO da General Motors) aquando da compra da Opel à GM

O famoso “Toque de Midas” colou-se ao português filho de uma professora de francês e de um agente de seguros de uma empresa francesa, que avançou para o maior passo da sua carreira: a fusão da PSA com a FCA (Fiat Chrysler Automobiles).

CARLOS TAVARES MIKE MANTLE PSA FCA FUSAO
Carlos Tavares (CEO da PSA) e Mike Manley (CEO da FCA)

Tratou de tudo com celeridade, ofereceu aqui e ali dividendos e em pouco tempo criou o quarto maior grupo mundial e o terceiro em termos de rentabilidade a que foi dado o nome Stellantis.

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Vítima do seu sucesso?

Carlos Tavares apresentou, no dia 1 de março de 2022, o plano estratégico Dare Forword 2030. Com efeito, um plano ambicioso que prometia alcançar uma margem de lucro operacional acima dos 10% em 2024 e 2027 e acima dos 12% em 2030. Com toda a certeza algo ambicioso, mas que Tavares conseguiu logo em 2021 (antes do plano) com 11,8%. Algo extraordinário quando os construtores convencionais raramente conseguiram margens de dois dígitos. Só para exemplificar, margens de 4 a 6% eram consideradas muito boas.

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No entanto, estas margens de lucro tão elevadas tinham razões menos prosaicas. Em primeiro lugar, Tavares aproveitou a crise dos semicondutores para vender as versões mais caras dos seus modelos. Em segundo lugar, com a procura a exceder a oferta, desapareceram os descontos e os incentivos à compra. Finalmente, Carlos Tavares aumentou, fortemente, os preços.

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Em outras palavras, a margem de lucro foi inflacionada por situações exógenas e não estruturais. Mas, como diz o povo, enquanto o pau vai e volta, folgam as costas e com um lucro de 18,6 mil milhões de euros (só ficando atrás da Toyota), todos estavam felizes.

Por outro lado, a Stellantis seguiu a tendência do mercado de privilegiar o valor face ao volume, exatamente o contrário do que se fazia no passado. Em outras palavras, não voltariam a ter sobre produção.

STELLANTIS EUA

Quando as coisas começaram a correr mal?

Com toda a certeza, o primeiro sinal de que algo estava a acontecer foi a quebra da promessa de não privilegiar o volume. O ano passado percebeu-se que o “stock” de produto da Stellantis cresceu… muito! Em 2021, o “stock” de carros prontos e finalizados era de 800 mil unidades. Em 2022 subiu para 1 milhão e no final de 2023 era de 1,5 milhões de unidades.

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Perante isto, Carlos Tavares vestiu o fato de macaco e, sendo um fervoroso adepto do corte de custos, começou por ter desavenças com os concessionários. Acusou-os de serem pouco ativos a vender o “stock”. Depois “atirou-se” aos fornecedores pressionando para uma redução, sensível, dos preços, colecionando inimigos e processos na Europa e nos EUA.

Confrontos com governos, sindicatos e fornecedores

Carlos Tavares perdeu o norte com choques contínuos com o Governo italiano e com o Executivo francês e viu as vendas minguarem cada vez mais e o “stock” a somar carros novos, prontos, sem comprador. Esteve no fio da navalha, mas como as contas finais do ano mostravam uma margem de lucro de 12,8%, um valor astronómico apesar de ser inferior ao de 2022 (13,4%), acabou por fazer valer o seu trabalho.

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Porém, a necessidade de acabar com o “stock” na Europa e nos EUA colocou um grão de areia na máquina de fazer lucros e como cantavam os Amor Eletro, “a máquina parou, deixou de tocar”, quer dizer, lucrar.

Dessa maneira, Carlos Tavares entrou em plano inclinado e de um lucro recordista em 2023, a Stellantis deverá acabar o ano bem no vermelho. Em primeiro lugar porque vão ter de “queimar” 10 mil milhões de euros. Em segundo lugar, porque a margem de lucro deverá cair para um valor entre 5,5 e 7%.

Por outro lado, os “stocks” nos EUA estão de tal maneira elevados que escoar tudo o que está nos armazéns será uma dor de cabeça.

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Como resolver o problema?

A ação mais fácil é despedir pessoas e a primeira cabeça a rolar foi da CFO (diretor financeiro) Natalie Knight, logo depois da Stellantis lançar anunciar que em setembro que deverá perder dinheiro no segundo semestre de 2024, juntamente com o responsável pelo mercado norte-americano.

Mas nem esses despedimentos nem a constante alteração dos responsáveis das marcas e das zonas geográficas, consegue resolver o problema de fundo. E qual é esse problema?

Carlos Tavares sempre defendeu o alargado portfólio de marcas da Stellantis. E o grupo europeu é o campeão da partilha de plataformas e peças da indústria automóvel mundial.

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Porém, o grupo Stellantis tem demasiadas marcas (algumas estão no congelador) e muitas delas não têm dimensão suficiente para contribuírem para um lucro operacional acima dos dois dígitos. Com toda a certeza, em condições normais de mercado, será impossível à Stellantis manter a trajetória de lucro e este ano as coisas estão deveras complicadas.

É difícil alguém sobreviver a quebras de vendas significativas como o valor de 17% nos EUA comparando com 2023. Pior quando marcas como a Jeep e a RAM, para além da Dodge e da Chrysler, perdem quota de marcado de forma significativa ao ritmo de dois dígitos. Só para exemplificar, a Stellantis tem produto de 2023 por vender e há, neste momento, 112 dias de produção da RAM 1500 e do Jeep Wagoneer nos concessionários, à espera de comprador.

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Carlos Tavares (CEO Stellantis) e John Elkann (presidente Stellantis)

Carlos Tavares em colisão com o concelho de administração

Este anúncio feito, num fim de semana, da saída do CEO do grupo a 18 meses do final do seu contrato e com efeito imediato, mostra como a clivagem entre Carlos Tavares e o Conselho de Administração é insuperável. Aliás, decidir ficar sem CEO e esperar cerca de seis meses a preparar uma saída sustentada, deixa tudo bem claro.

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John Elkann, presidente da Stellantis

A crise da parte norte americana da Stellantis foi o que espoletou esta queda de Carlos Tavares, aliado a tudo aquilo que acima referimos. Claramente, Carlos Tavares entrou em rota de colisão com o presidente da Stellantis, John Elkann e com o Conselho de Administração.

O português queria seguir as diretrizes da União Europeia, estava contra o adiamento das regras mais apertadas em termos de CO2, defendendo o negócio que fez com a compra da Leapmotor. Com a compra do construtor chinês, Tavares pensou em oferecer carros elétricos a preços baixos, dinamizando as vendas e justificando a sua aposta nos modelos elétricos. Que, antes, ele detestava!  

Ora, este pensamento está, neste momento, nos antípodas da ideia vigente dentro do Conselho de Administração da Stellantis. Que defende maior flexibilidade e deseja uma suavização das regras além do adiar do objetivo de banir os motores de combustão interna. Ou seja, seguindo o que a indústria está a exigir aos governantes e cuja única voz dissonante era a de Tavares. Mas há mais!

Estratégias que deixaram de resultar

Carlos Tavares criticou, publicamente, a gestão norte-americana da Stellantis da quebra nas vendas e pelo acumular de “stocks”. O gestor que recebeu 36,5 milhões de euros de remuneração devido aos resultados de 2023, nunca culpou a sua obsessão com o lucro que motivou o aumento de preços muito acima do razoável.

Dessa maneira, o estilo de gestão de Carlos Tavares, onde fazia questão de mostrar quem mandava, começou a gerar fraturas no concelho. E, quando questionado sobre a sua estratégia para sair da situação, a resposta não foi meiga. Segundo uma fonte citada pelo Automotive News Europe, o português terá respondido “vocês não interferem com o meu trabalho. Não é essa a vossa responsabilidade!”

Carlos Tavares insistiu nas receitas que, durante a sua carreira, sempre deram resultado, ou seja, cortar custos, pressionar os fornecedores e aumentar preços. Se no passado, os resultados financeiros foram camuflando os problemas… agora, “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.”

A clivagem foi de tal ordem que os representantes da Exor (a holding da família Agnelli), a família Peugeot e o Estado francês decidiram despedir Carlos Tavares sem terem, ainda, um CEO para o substituir.

Num comunicado, Shawn Fain, presidente do sindicato UAW dos Estados Unidos, referiu que “Tavares deixa atrás de si uma confusão de problemas. Que levam a penosos ‘layoffs’ e à existência de carros exageradamente caros nos concessionários.”

Stellantis Logo

Comité Executivo Interino liderado por John Elkann

A Stellantis anunciou, em comunicado, a nova organização que vai gerir o grupo até ser encontrado o novo CEO. Sem surpresas o Comité Executivo Interino (CEI) será liderado por John Elkann. Xavier Chéreau será o responsável pelos recursos humanos, Ned Curic lidera a engenharia, tecnologia, software e a Free2Move, ao passo que Arnaud Debouef será o responsável pela produção e cadeia de fornecimento.

António Filosa ficará com as regiões do continente americano e com todas as marcas norte americanas e também o design, incluindo o da Maserati. O planeamento estará a cargo de Beatrice Foucher e Jean-Philippe Imperato toma conta de toda a Europa e das marcas europeias tal como o departamento de estilo. As finanças estão na mão de Douglas Ostermann e Maxime Picat ficará com as geografias do Médio Oriente, África, Ásia e China mais a Leapmotor.